O século XXI expõe diante de nós, muitas questões inconclusas, muitas
variâncias comportamentais e muitas incertezas. “Conhece-te a ti mesmo” é
uma recomendação antiga, socrática e sempre importante.
Entretanto, se não é nada banal a busca deste conhecimento, que por si só já
ocupa suficientemente o indivíduo, de forma pretensiosa e leviana, por vezes,
considera-se simples o conhecimento do outro e a sua categorização.
Uma forte tendência humana a valorização de rótulos na tentativa de
compreender os fenômenos pertinentes à condição de ser humano tem
deixado os que se apegam aos rótulos muito confusos e as categorizações
ainda mais complexas.
Quando a questão é a sexualidade, a busca de rótulos se torna ainda mais
intrigante por ser tão diversificada à maneira de cada um vivencia-la.
Ao estudar sobre sexualidade somos, invariavelmente, de uma forma ou outra,
remetidos a questões ligadas ao poder.
Sob uma ótica sociológica podemos pensar na noção de gênero e entende-la
como relações estabelecidas a partir da percepção social das diferenças
biológicas entre os sexos.
A percepção das diferentes culturas está fundada em esquemas classificatórios
que opõem o masculino ao feminino, sendo esta oposição homóloga
(confirmada) e relacionada a outras: forte e fraco; grande e pequeno; acima e
abaixo; dominante e dominado.
Essas oposições são hierarquizadas, cabendo ao pólo masculino e seus
homólogos a primazia do que é valorizado como positivo, como superior. Essas
oposições vinculadas a hierarquizações são arbitrárias e historicamente
construídas. Delas se estabelecem padrões e a divergência dos padrões,
causa desconfortos.
É comum e próprio do ser humano procurar manter-se em sua zona de
conforto, ela representa a percepção de segurança em função daquilo que é
familiar e conhecido.
O desconhecido provoca o medo e se este medo se solidifica, tende-se a negar
que o diferente seja, apenas diferente, e assim compreendido, sem
necessariamente apresentar-se como ameaça.
A transexualidade é um tema que desafia conceitos sólidos e normativos.
A confrontação com ele implica a reflexão/intuição sobre a possibilidade de que
esta solidez não seja tão sólida e a constatação de que as “normas” não dão
conta da complexidade que o assunto envolve, como dito no texto anterior.
Podemos começar a falar do assunto fazendo algumas exclusões. Transexuais
não são drag queens ou king dressers.
A transexualidade não é sinônimo para feitichismo e não está vinculada a
homossexualidade.
A transexualidade está inserida no que modernamente se tem chamado de
sexualidade trans ou transgênero, termo que possui uma abrangência maior e
por isto mesmo não revela muito sobre as especificidades.
Falaremos disto em outro momento.
Agora, é a especificidade que nos interessa.
Caminhando em direção a ela, evocamos o sexólogo Cláudio Picazio que
dividiu pela primeira vez a sexualidade humana em quatro partes, que ele
chamou de Os 4 Pilares da Sexualidade, no livro “Diferentes Desejos”.
São elas: o sexo biológico, a identidade sexual, os papéis sexuais, a orientação
sexual. Uma visão mais recente, inclui a prática sexual como um destes pilares.
O transexual expressa suas características de gênero (identidade e papel) de
uma forma que não corresponde às características comumente associadas ao
sexo biológico (ou presumido) desta pessoa.
É uma desarmonia, uma estranheza na relação corpo físico e o gênero que ele
define e a compreensão psíquica de si como pertencente a um gênero oposto.
É muito superficial e cruel pensar na transexualidade como uma escolha, um
capricho passageiro, uma rebeldia patológica e associá-la de forma invariável a
prostituição.
O preconceito e a marginalização, além da poliítica de assepsia social,
impuseram de forma contundente, a prostituição, como uma das poucas
opções possíveis até a bem pouco tempo atrás. Questão que começa a ser
modificada com exemplos de profissinais de várias áreas de atuação e que vão
ficando conhecidos através da mídia e fazendo parte do cotidiano, O
transexual, “enfrenta obstáculos imensos na sua busca pela consistente
integração física, emocional, espiritual e sexual que é conquistada a enormes
penas sociais”, Gerald Ramsey.
Até o momento, não se pode afirmar que haja algum consenso na definição
sobre porque alguém é transexual.
Existem sim muitas e diferentes respostas, para casos onde se identificam os
vários fatores que compõem os percursos individuais.
A Dra. Jaqueline de Jesus em seu artigo Transexualidade:breve introdução, diz
que a transexualidade não é uma benção e nem uma maldição é, apenas, uma
condição.
O Dr. Ramsey em seu livro Transexuais: perguntas e respostas, apresenta
diversos casos cujos percursos mostram que existem diversas formas lidar com
esta condição.
Há muito sofrimento envolvido até o alcance da integralidade.
Para algumas pessoas esta integralidade só se completa com a cirurgia de
redesignação sexual, para outras, ela não se faz necessária.
Mas para todos (homens e mulheres transexuais) é importante viver como se é
por dentro seja no campo profissional, social, espiritual, sexual, enfim, em
todos os aspectos.
Os transexuais querem ser reconhecidos pelo que são em essência sem
prejuízo do que são na aparência. E sobre a aparência a medicina tem
fornecido muitas possibilidades.
Essa dor provocada por uma demanda identitária, talvez, seja naturalmente
apreendida pelas mulheres de maneira geral, cuja história registra em
determinado período que a definição de mulher consistia em ser “um homem
imperfeito”.
A mulher seria “um ser invertido que carregava dentro de si aquilo que o
homem trazia exposto”- diz a socióloga Berenice Bento em seu livro O que é
transexualidade.
O percurso das mulheres até este nosso momento histórico também não foi
nada fácil. E a busca da integralidade é um percursos para todos os seres
humanos. Ainda mais, em sociedades que valorizam a superficialidade.
Seria bom se todos estivéssemos interessados em caminhar na direção da
evolução existencial e coletiva.
Todo indivíduo tem direito a integralidade existencial. Não se deve fingir, negar
ou simplesmente rotular e marginalizar alguém por suas diferenças em relação
ao que é comum, familiar e conhecido.
É preciso continuar caminhando na direção do respeito às individualidades e a
convivência coletiva. Isso envolve tanto a tolerância quanto limites que
resguardem a possibilidade desta convivência.
Ainda, há muito que se aprender no campo da sexualidade humana que é não
apenas um fenômeno fisiológico é, sobretudo, uma vivência de dimensão
psicológica, influenciada por um amplo espectro de fatores ligados as histórias
individuais e coletivas.
(Autora:Edna Cassiano-Sexóloga, Psicanalista e Escritora-membro da Associação Brasileira de Medicina Psicossomatica-Regional Distrito Federal)
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